PREFÁCIO

 

A minha melhor poesia é aquela que nunca escrevi

e que talvez nunca escreverei...

Morrerá improfícua...

Como uma lágrima seca... dentro de mim.


                                                                De Hyppólito

 

segunda-feira, 25 de março de 2024

 





O Divã Onírico


 “A vida é como a esfinge da mitologia grega. 

A esfinge ou você a decifra ou será devorada por ela.

 A vida ou você entenda o seu significado

 ou continuará existindo como uma pedra imóvel

 em um lugar qualquer à espera de ser removida ou triturada.”

Valdecir A. de Oliveira



“Dedico este Texto-Poesia a minha esposa:

Andréa

Psicóloga, Mãe e Esposa encantadora,

Uma pessoa que aprendi a amar e a respeitar,

por toda sua ética profissional e pelo seu

inexorável lado humano.”

A ideia de ousar a compor este poema, veio após a leitura da

 “Última longa entrevista de Sigmund Freud”

Conduzida por George Sylvester Viereck

Recomendo sua leitura antes desse Poema.

No final da entrevista o jornalista descreve:


“A noite chegara. Estava na hora de pegar o trem de volta para a cidade que um dia abrigara o esplendor imperial dos Habsburgos. Freud, acompanhado pela esposa e pela filha, subiu a escada que ligava o seu retiro nas montanhas à rua, para se despedir de mim. Ele me pareceu triste e sombrio, quando acenou para mim...”

“Não me faça parecer um pessimista — (comentou depois do último aperto de mão) — Eu não desprezo o mundo. Expressar insatisfação para com o mundo é só uma outra maneira de cortejá-lo, para conseguir plateia e aplausos! “

“(O apito do meu trem soou na noite. O carro me levou à estação com rapidez. Aos poucos, a figura levemente curvada e a cabeça grisalha de Sigmund Freud desapareceram ao longe. Como Édipo, Freud olhou fundo nos olhos da Esfinge. O monstro propõe seu enigma para qualquer viajante. O andarilho que não souber a resposta será cruelmente agarrado e atirado contra as rochas. Mesmo assim, ela talvez seja mais gentil com aqueles que destrói do que com os que adivinham seu segredo.)”


O Divã Onírico


Parte I



Nel mezzo del cammin di nostra vita

mi ritrovai per una selva oscura,

ché la diritta via era smarrita.

("No meio do caminho desta vida

me vi perdido numa selva escura,

solitário, sem sol e sem saída.”)

Dante Alighieri





A paisagem não lhe era desconhecida... vales, montanhas, charnecas e pântanos.

Uma jornada inóspita, talvez para alguns...aterrorizante, mas para ele, não ...!

Caminhava em meio a tudo isso com passos firmes, tranquilo, sobranceiro...

Caminhava, não indiferente, mas com a calma e a resiliência de um especialista.

Sem enveredar-se na perigosa senda da intocabilidade... Caminhava...

Em meio a biodiversidade daquele ambiente onde coabitavam monstros ferozes e gigantescos com anões acanhados e complacentes,

Onde pássaros altaneiros rasgavam o céu, para a contemplação ambiciosa de seres rastejantes,

Onde anjos e demônios conviviam em uma relação por vezes belicosa e por muitas vezes cumpliciosa...


A mente humana havia se tornado para ele um lugar de ofício...

Não havia nesse passeio algum entrave e nem mesmo algum sacrifício. 

A sua desenvoltura neste ambiente era soberba e contumaz... 

Nada fugia aos seus olhos...!  Nada ficava para trás...!


O tempo se fechava, havia cheiro de tempestade no ar...

Algo corriqueiro naquele ambiente hostil e voraz.

Pela primeira vez aquilo o incomodava,

Sentindo assim um temor que a muito não sentia...

Uma vontade premente, quase que Jupiteriana.,

De se abrigar...  De se esconder....


Foi então que avistou aquela casa...

Que casa era aquela...?!

Que após tantas jornadas escrutinantes,

Por desertos, vergéis e escondedouros,

Que após tantos anos dedicados ao conhecimento

Cabal daquele sítio, teria fugido aos seus olhos perquiridores...?!


Aquilo lhe exasperava... ao mesmo tempo lhe excitava...

Casa estranha aquela...

Contrastando-se com tudo naquele cenário...

Como se fora o encantamento de um oásis no deserto...

Como aquilo lhe havia passado despercebido...?


Não...! Aquela casa não existia...!

Talvez uma ilusão de ótica, talvez uma miragem...!

E quando se deu por conta.... Já caminhava em sua direção...

Passos céleres... apreensivos...

Qual seria o motivo daquilo estar ali...?!


Seus olhos incrédulos, mas como sempre perscrutadores,

Iam delineando em sua mente detalhe por detalhe da estranha moradia,

Não tinha a imponência esdruxula e obsoleta das mansões,

Mas uma sobriedade, uma aparência de paz e de espiritualidade,

Como se tivesse sido construída em algum Conto de Fadas.


Chegando perto, reparou que nada havia em sua porta escrito,

Mas sentiu quase que naturalmente, que ali ele era bem-vindo,

Sim...! Naquela casa morava alguém feliz e hospitaleiro.

Quando ia bater, a porta se abriu, antes mesmo que isso se fizesse necessário,

Adentrou em um ambiente sem luxo, mas de uma excelência e sanidade distintas...

Um crepitar de lenha na fogueira tornava aquele ambiente ainda mais aconchegante e afável.

Lá fora a tempestade desabava, mas, parecia longínqua e já não causava incômodo algum.


Na sala havia um homem sentado à mesa que lhe fez um sinal cordial para que se sentasse.

Ele puxou a cadeira e sentou-se...

Neste instante percebeu que o temor que sentia no percurso até aquela casa, havia se dissipado...

Sentia-se relaxado e bem-disposto e percebeu que nem seu maxilar enfermo doía mais.  

Foi aí que pela primeira vez fitou os olhos daquele ser que estava diante dele...

Um incontinente arrepio foi lhe subindo dos pés até o pescoço...

Nunca antes, entre tantas sessões terapêuticas, havia fitado olhos assim...


Olhos que tinham:

Dignidade... Sem a afetação puritana dos “Hipócritas” ...

Autoridade... Sem o despotismo vil dos “Autocratas” ...

Superioridade... Sem a arrogância fátua e corpulenta dos “Prepotentes” ...

Sapiência... Sem o obscurantismo velado dos “Eruditos Insidiosos” ...

Temperança... Sem a subserviência infame dos “Covardes” ...

Sem proferir uma palavra e sem qualquer resquício de ironia, aqueles olhos falavam para ele:

“Eis aqui o ‘Grande Explorador’ do lado obscuro da alma ...”

“O ‘Desbravador’ do inconsciente, aquele que ousou a levantar o véu da angústia humana ...”

“Aquele que rompeu os nós da ambivalência humana e que com luz da ciência esquadrinhou o que tinha de mais íntimo na criatura...”


Percebeu que suas forças psíquicas se esvaiam, um cansaço enorme lhe sobreveio...

Sentia-se esgotado como se fora uma espécie de “Sísifo” ...

Via diante daquele ser, o trabalho de toda uma existência e o tempo gasto em tanto estudo

Rolando, como se uma enorme pedra fosse, para o limbo... para o nada...!

Mas aquele ser continuava a fitá-lo e a falar com ele, agora com uma certa benevolência...

“Não...! Nada tinha sido em vão, a pedra não rolaria para baixo, permaneceria no cume da montanha,

Incrustada como uma joia e ali permaneceria para todo o sempre...

Tudo fez parte de um propósito... Até o teu ateísmo...

Pois a fé e a crença obstruiriam teu caminho,

Não chegarias com elas aonde hoje chegastes...

Aqui... diante de mim...!

Eu sou ‘Alfa e Ômega’, princípio e fim...

Toda tua obra começa e termina em mim.”


Tendo a “conversa” como encerrada, fez um movimento para levantar-se,

Neste instante o Homem que se sentava à sua frente fez um sinal para que esperasse,

E abriu sua mão para lhe mostrar algo à sua esquerda,

Ele olhou e viu uma alva cortina que foi lentamente se abrindo,

Revelando para seus olhos descrentes um lindo Divã...

Nunca tinha visto e nem imaginado que existisse uma peça daquele porte...

A que possuía pareceu-lhe de repente um pobre “Leito de Procusto”.

Foi neste momento que lhe veio a absurda ideia:

Teria ele o supremo privilégio de ser analisado por Deus...?!


Suas pernas, descontroladamente, começaram a tremer,

E foi com a mente perdida em um emaranhado de pensamentos confusos,

Seu corpo à beira de um completo estupor...

Que resoluto levantou-se para se dirigir ao Divã.

Neste instante, aquele “Ser” de forma circunspecta e branda,

Fez um sinal para que ele voltasse a se sentar, ao que prontamente obedeceu.

E neste momento aquele “Homem” se levantou...

Suas proporções eram imensuráveis... Era um Gigante...!

Um misto de admiração e de medo toldavam as faces do “Velho Professor”,

Que totalmente atônito assistia aquela cena inimaginável:

Aquele “Gigante” ir aos poucos definhando... diminuindo....

Enquanto caminhava em direção ao “Onírico Divã”,

Até, por fim, seu corpo chegar à efêmera proporção humana.


Deitou-se e voltando seus olhos ao Analista, pediu:

Com olhos, agora débeis, agora frágeis, agora humanos...:

“Não tenha receios e nem escrúpulos, permita-se incomodar-me,

Rasgue por fim este véu que obstaculiza e que confunde

O conhecimento do que é Divino e do que é Humano...

Faça um favor a ti, a mim e a humanidade...

Decifra-me...!”



Parte II


“A Consciência Humana é este morcego!

Por mais que a gente faça, à noite, ele entra

Imperceptivelmente em nosso quarto!”

Augusto dos Anjos



Algo semelhante ao som de uma explosão, ouviu-se... e ele estava de volta ao seu estúdio,

Sentado em sua poltrona, transpirando além do usual e corriqueiro...

A dor em seu maxilar havia voltado com mais força e veemência,

Como uma espécie de autofagia punitiva e deletéria...

O pensamento embotado, uma falta de ânimo que há muito não sentia...

Parecia que nada lhe fazia sentido, se sentia fraco... debilitado...

A lembrança daqueles olhos... Ora sóbrios e pertinazes, ora afáveis...quase dóceis... o perseguiam.

E foi neste instante que do nada a “Culpa” lhe sobreveio...

“Culpa...!

Um “Lugar Comum” entre os existentes...

Pois o Ser Humano sempre se sente culpado de alguma coisa...

E vai arrastando miseravelmente esta “Culpa” pela vida,

Como se fosse grilhões de dívidas e de iniquidades...”


Olhou para as paredes de seu estúdio e viu um enorme buraco,

De onde saiam enormes escorpiões...

E pela primeira vez sentiu medo deles...

Quem havia produzido tão horrendo orifício...?

Quem havia violado a privacidade de sua casa...?

Não...! Não aceitaria ser invadido assim...

Ele era o “Invasor” ...! Era ele que determinava as regras deste jogo...!


Então se levantou e andou pela sala agitado e pressuroso,

Foi esmagando Lacrau por Lacrau, até que mais nenhum restasse,

E viu nesta atitude um tipo de redenção, um tipo de catarse...

Não...! Não fora só sua casa usurpada por monstros e lacraias,

Sua alma também havia sido invadida e sinistramente violada...

Teria sido aquele “Ser” do inusitado e inesperado colóquio...?

Lembrou-se de suas últimas palavras no encontro:

“Decifra-me...!”

Mas não o “Decifrou” ... Não teve tempo para isso...

Quando se deu conta estava de volta ao seu Estúdio

Entregue as dores de sua enfermidade e aos escorpiões... 


Uma cólera que há muito não sentia (algo tão raro naquele homem.),

Foi-lhe tomando, lhe possuindo...

Queria gritar ao mundo bem alto e com toda intensidade: 

“Que Deus não existia... Que Deus era uma mentira...

Que Deus era uma ilusão... Uma infantilidade...!”


E foi neste momento tomado pela fúria e quase fora da razão,

Que avistou em sua estante toda sua obra ricamente encadernada,

E ao se aproximar dela sua alma convulsa perguntou ao nada:

Teria sido apenas tempo perdido...? Uma simples e pura sublimação...?

Começou a derrubar tomo por tomo...

Mas de repente parou...Ao ver, alucinado...!

No tapete da sala... Desesperados...!

Uma multidão de homens nus,

Soterrados...!

Por uma avalanche de “Totens e Tabus” ...


De Hyppólito