Inspirado no célebre texto de Marina Colassanti
“Amoldar-se
ao mundo e as suas regras não quer dizer que as aceitamos e nem que fazemos
parte delas...”
A gente se acostuma... a ser isso que somos, a ser o que
dia a dia nos torna...A brigar por vagas nos estacionamentos, a brigar por
vagas nos empregos, a brigar por vagas no coração de alguém...
A gente se acostuma... a ser promovido sentido-se rebaixado, a ser escolhido sentindo-se relegado, a ser abençoado sentido-se maldito.
A gente se acostuma... a colegas que nos tiram da solidão
sem nos proporcionar companhia, a beijar sapos que não viram príncipes, a
frequentar lugares que odiamos e a conviver com pessoas que para nós nada
acrescentam, nada significam...
A gente se acostuma... a ser gerido pela
incompetência, a ser torturado por ela sem clemência, tornando-se mero joguete em mãos inescrupulosas que violam nossa inteligência...
A gente se acostuma... A encarar a vida como um mero
exercício de aceitação... A deitar no “Leito de Procusto” das regras
sociais... Amputando assim nossas aspirações, nossos anseios, nossas esperanças...
A gente se acostuma... que é dando que se recebe, que é
fechando os olhos que se perdoa, que é apanhando que se cria escudos...
A gente se acostuma... à gravata apertada das
instituições, à saia justa das negociações
e a usar a túnica hedionda da cumplicidade...
A gente se acostuma... a corrupção dos elogios
fraudulentos, a adulação hipócrita de nossos subordinados e a torpe indulgência
de nossos superiores...
A gente se acostuma... a ser parte de uma acéfala
estatística, estatística essa que não gera nada...não cria nada...não prova
nada...que nos transforma em nada...
A gente se acostuma... a ganhar batalhas, perdendo-as, a
triunfar sentindo a inutilidade da conquista e o amargo sabor da vitória
pírrica.
A gente se acostuma... a enterrar nossos sonhos, nossos
ideais, a ocultar nossos mais puros sentimentos, a engolir a seco toda
mediocridade do mundo, a aplaudir de pé o exibicionismo infame dos
hipócritas...
A gente se acostuma... a ser fera para não ser devorado por ela, a participar desse jogo sem questionar suas regras, a aceitar
a trapaça no blefe dos farsantes...
A gente se
acostuma... a não olhar para frente com medo do tempo que se esgota e que nos
esgota...
A gente se acostuma... ao medo do que virá, do que será,
do que farei..?
A gente se acostuma... a fazer várias coisas ao mesmo
tempo sem se concentrar em uma, a ver a nossa vida rapidamente esvaindo-se
na volúpia das horas sem se dar conta disso...
A gente se acostuma... a ver nossos filhos crescerem na
mesma proporção de nossos medos, a ver a cada dia nossa imagem no espelho
refletida sem nos enxergarmos, a envelhecer sufocando a criança que brincava em
nosso peito...
A gente se acostuma... a se despedir chegando, a chegar
partindo... a não olhar para trás com medo de ver que nos deixamos no caminho,
que alguma parte de nós ficou na estrada, talvez a nossa melhor parte...
A gente se
acostuma... a ver entes queridos partindo, nossos amigos sumindo... as mesas
ficando vazias...a gente se acostuma a ficar cada vez mais sós...
Sim...! A gente se acostuma... mas não devia...*